Thursday, August 20, 2009

O canito não corta a barba_Clara Ferreira Alves


Na aldeia faziam-se ao mar. Quem não gostava cavava a terra. Depois chegaram os "espanhóis".
Todos os dias passo por ele, logo de manhãzinha, quando vou comprar o pão e beber a bica. Está parado numa esquina caiada. A olhar o fio do horizonte. Às vezes tem uma camisa de flanela de xadrez toda abotoada e outras vezes tem um blusão por cima, pardo do uso. O blusão deve ser para os dias em que a nortada quase lhe arranca da cabeça o boné. Pisca os olhos e mexe-se para fazer uma festa no cão: o canito não corta a barba! Um único dia mudou a frase: o canito gosta de água? Eu não sabia se era de beber ou do mar e disse que a do mar o canito não gostava muito. Não gosta de mar? Não nada?, perguntou ele. Nadar, nadava; não era o desporto favorito e fugia da água a sete pés. O velhote deu uma gargalhada e disse que tinha tido uns cães e que todos eles gostavam de água, mais a das barragens e dos rios do que a do mar. Nunca tínhamos tido uma conversa tão longa.
Acompanhou-me ao café da aldeia e pediu o costume. Um copinho de aguardente. Eram nove e meia. Um pouco cedo para aguardente, disse eu. Ainda pensei dizer "álcool" mas a palavra ficava sozinha no cenário. Esta gente diz tinto, branco, bagaço, medronho. As coisas pelos nomes. Atrás do balcão uma mulher enerva-se a servir torradas, meias-de-leite e sumos de laranja aos "espanhóis". Os espanhóis levantam-se cedo e pedem muitas tostas mistas em pão de fatia, com café com leite. Desorientam-na. Querem tudo ao mesmo tempo. Às vezes os "espanhóis" são ingleses, alemães, franceses. Quando peço uma fatia de torta de alfarroba ela aconselha-me a esperar pela torta fresca que virá à tarde e a deixar aquela para os "espanhóis".
O velhote, que tem uma idade entre 60 e 80 anos, a pele curtida pelo sol e umas mãos peludas e enormes que agarram o copo com delicadeza, tira um maço de cigarros do bolso da camisa de xadrez. Pall Mall. É estranho ver o nome Pall Mall no cenário rústico, como se os cigarros pertencessem a outro planeta, onde as pessoas vestem bem e falam "estrangeiro". O café tem uma máquina de venda de cigarros; os "espanhóis" desesperados pelo primeiro cigarro batem no metal quando ela não retribui o pedido. Às vezes a máquina fica sem cigarros e "os espanhóis" olham-na com angústia, coçando os cabelos crespos do mar.
Pergunto ao velhote se ele bebe todas as manhãs um copinho daqueles e se, não bebendo, fica mal disposto como os "espanhóis" que lutam com a máquina e a insultam por estar vazia. Dependência, diriam os peritos do álcool e do fumo. Dependência tóxica. Às vezes bebe uma cerveja. Nos dias de calor. Para matar a sede. A aguardente para matar o bicho. É do tempo em que se calava o choro das crianças de mama com um pano embebido em vinho e açúcar para elas ficarem sossegadinhas. Puxo-lhe pela memória. Como era a aldeia? Era uma aldeia pobre com meia dúzia de casas. Uma escola primária e uma igreja construídas pelo Salazar. Faziam-se ao mar e quem não gostava de mar ia embora ou cavava a terra; a terra ali nunca deu grande coisa por causa das areias e dos ventos. Quando começaram a construir as estradas muitos foram espalhar alcatrão, mais certo do que aguentar ondas e tempestades.
O mar é traiçoeiro, diz o velhote piscando mais os olhos, como se a faísca de mar ao fundo da aldeia o encandeasse. Mais traiçoeiro do que uma mulher. Ele teve uma boa mulher, muitos anos, e depois ficou viúvo. Ninguém para o amortalhar. Há muitos viúvos na aldeia, nem sabe porquê. Falam uns com os outros, não se sabe de quê. E teve dois rapazes, um foi para a Alemanha e o outro foi embora e anda nos barcos, lá por Espanha. Espanha onde? No Norte, lá para cima, para os gelos. Nos barcos de pesca que congelam o peixe ainda ele salta na rede. Vigo, a Biscaia? Longe, não muito certo do que representam estes nomes. Nos gelos. Finisterra, penso eu. A boa pesca era a do atum, aí é que se ganhava dinheiro. Muito atum havia pelos Algarves. Famílias inteiras a viver do atum. Depois vieram as estradas e os hotéis e agora toda a gente anda a vender as casas por bom dinheiro. Ele já quis vender a dele, as sobrinhas não deixaram. Uma casita velha. As sobrinhas têm é medo de que ele fique sem casa. Está rijo e são. A malta hoje só vê televisão, passam o tempo sentados. E muita droga.
Ele trabalhou toda a vida. Dá um golito. O tabaquinho é como se fosse família. Faz companhia. Bate outro cigarro e faz uma festa no cão. Malta fraca, comem torradas. Andam aí com as tábuas todos empoleirados e não sabem nada de mar. O mar é traiçoeiro. Surf, uma palavra tão deslocada como álcool. No Inverno, o mar nem vê-lo. Se o vissem todo atiçado fugiam a sete pés com a tábua. Ele nunca aprendeu a nadar. O canito é que sabe, com aquela barba. Fugir dele. Dá um estalo com a língua depois de escorropichar o copo.
[Expresso-08.08.2009]

10 comments:

qel said...

um fox terrier. Tenho um desses em casa, é o Paco :) *

Eu Mesma! said...

texto muito giro....

mfc said...

Dá gosto lê-la e ouvila ao sábado na SicNotícias!

Lu.a said...

Já não a lia há tanto tempo... :)

Porcelain said...

:) Muito bonito, muito bem escrito...

Teresa Santos said...

Olá Velinha,

Muito interessante, o texto.
Para além da temática, tem um ritmo de escrita - que oscila entre o rápido e o lento - muito bem conseguido.

Abraço, Amiga.

Chinezzinha said...

Gostei!
jinho

Mãos de Veludo said...

como sempre... um sorriso... :)

Rolando Palma said...

O mar é só um pretexto. A vida continua, dia após dia, com viúvas, jogos de dominó no jardim e uma aguardente bem aviada.

É como ele diz... ninguém para o amortalhar.

Uma óptima semana...

Mar Arável said...

Se não ladrassem

quando estão no poder

eu diria

cães ao poder