Wednesday, May 26, 2010

Estou num dia em que me pesa, como uma entrada no cárcere, a monotonia de tudo.


A monotonia de tudo não é, porém, senão a monotonia de mim.

Cada dia é o dia que é, e nunca houve outro igual no mundo.

O meu desejo é fugir.

Fugir ao que conheço, fugir ao que é meu, fugir ao que amo.

Desejo partir - não para as Índias impossíveis, ou para as grandes ilhas ao Sul de tudo, mas para o lugar qualquer - aldeia ou ermo - que tenha em si o não ser este lugar.

Quero não ver mais estes rostos, estes hábitos e estes dias.

Quero repousar.

Quero sentir o sono chegar como vida, e não como repouso.

Uma cabana à beira-mar, uma caverna, até, no socalco rugoso de uma serra, me pode dar isto. Infelizmente, só a minha vontade mo não pode dar.

A escravatura é a lei da vida, e não há outra lei, porque esta tem de cumprir-se, sem revolta possível nem refúgio que achar.

Uns nascem escravos, outros tornam-se escravos, e a outros a escravidão é dada.

O amor cobarde que todos temos à liberdade - que, se a tivéssemos, estranharíamos, por nova, repudiando-a - é o verdadeiro sinal do peso da nossa escravidão.

Eu mesmo, que acabo de dizer que desejaria a cabana ou caverna onde estivesse livre da monotonia de tudo, que é a de mim, ousaria eu partir para essa cabana ou caverna, sabendo, por conhecimento, que, pois que a monotonia é de mim, a haveria sempre de ter comigo?

Eu mesmo, que sufoco onde estou e porque estou, onde respiraria melhor, se a doença é dos meus pulmões e não das coisas que me cercam?

Eu mesmo, que anseio alto pelo sol puro e os campos livres, pelo mar visível e o horizonte inteiro, quem me diz que não estranharia a cama, ou a comida, ou não ter que descer os oito lanços de escada até à rua, ou não entrar na tabacaria da esquina, ou não trocar os bons-dias com o barbeiro ocioso?

Tudo que nos cerca se torna parte de nós, se nos infiltra na sensação da carne e da vida, e, nos liga subtilmente ao que está perto, enleando-nos num leito leve de morte lenta, onde baloiçamos ao vento.

Tudo é nós, e nós somos tudo -, mas de que serve isto, se tudo é nada?

Um raio de sol, uma nuvem que a sombra súbita diz que passa, uma brisa que se ergue, o silêncio que se segue quando ela cessa, um rosto ou outro, algumas vozes, o riso casual entre elas que falam, e depois a noite onde emergem sem sentido os hieróglifos quebrados das estrelas.

[O Livro do Desassossego_Bernardo Soares]

4 comments:

Valéria Gomes said...

É verdade. Nada pode mudar em torno, se o problema está em nós.

Beijos grandes!!!

via said...

se comungar desse estado de espírito nos faz menos sós, eu comungo, totalmente, uma cabana no meio de uma serra.

ruth ministro said...

Pessoa... sempre grande.

Beijos

poetaeusou . . . said...

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eu sou um infeliz,
quanto mais fujo,
mais visivel estou !
,
conchinhas,
,
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