Monday, May 03, 2010

Só há pedófilos entre os padres?_Inês Pedrosa



Dos políticos pedófilos é proibido falar. Bendita prescrição.

Há uma coisa que eu nunca poderei perdoar aos políticos: é deixarem sistematicamente sem argumentos a minha esperança", Miguel Torga, "Diário", 14 de Novembro de 1985.
De repente, parece que o crime de pedofilia é um exclusivo dos sacerdotes da Igreja Católica. Não haverá pedófilos em nenhuma outra religião? E que dizer das religiões - como o islamismo, em diversos países do Médio Oriente - que não só pactuam como aprovam o casamento forçado de meninas com velhos? Ou o crime de pedofilia, desde que consignado pela lei, deixa de ser crime?
Critica-se o Vaticano por não fazer um acto de contrição suficientemente claro quanto aos crimes dos seus membros. Não entendo porque teria a Igreja de pedir desculpa por crimes que nada têm que ver com a instituição enquanto tal. A religião católica condena a pedofilia, como aliás todos os crimes contra as pessoas, sem olhar a credos ou raças. Nem todas as religiões defendem os direitos humanos em absoluto - mas a Igreja Católica do século XXI defende-os. A história é um longo estendal de crimes imperdoáveis - se nos fixarmos nela, não encontraremos um só período, até ao século XX, em que as pessoas tenham sido consideradas todas igualmente dignas. Ainda hoje, em largas partes do mundo, as mulheres, as crianças ou os pertencentes a etnias diferentes da maioritária são tratados como lixo. A famosa Grécia Antiga era um território de senhores e escravos e uma civilização que oprimia barbaramente as mulheres. Sempre que se fala de pedofilia surgem conversas tão eruditas quanto insidiosas sobre as relações íntimas de aprendizagem entre homens e rapazinhos na Grécia Antiga - como se as iluminações mentais de uma plêiade de filósofos pudessem justificar o injustificável. O brilhantismo de Heidegger não chega para perdoar o nazismo - antes pelo contrário: é importante pensarmos como pode uma cultura subir tão alto e descer tão baixo em simultâneo. A cultura alemã, como a civilização grega, são excelentes campos de análise sociológica, política e filosófica. Como puderam os espíritos criadores da ideia democrática de polis considerar a cidadania como um privilégio dos supostamente mais aptos? De que modos não vigora ainda hoje este entendimento do mundo?
A mensagem de Cristo é precisamente a oposta - e se é verdade que a Igreja Católica tem um modo hierárquico e ostentatório de ser e de viver que em nada se coaduna com o modo de viver de Cristo ou a palavra dos Evangelhos, não é menos verdade que é ela quem hoje está, muitas vezes só, junto dos desvalidos. Se assumisse a culpa pelos crimes de pedofilia de um conjunto dos seus elementos, a Igreja estaria a sujar a imagem desses seus outros milhares de padres que se entregam a tornar felizes os que nada têm.
Entretanto o julgamento da pedofilia na Casa Pia eterniza-se. Esta semana surgiu a notícia de que uma das vítimas, transformada em mera testemunha porque os abusos de que foi alvo já prescreveram, ameaçou fazer justiça pelas suas próprias mãos contra os arguidos. Notícia sem alarde - talvez porque o presumível autor dos crimes de pedofilia já prescritos é, segundo o "Diário de Notícias", uma "figura do Estado", cujo nome o Tribunal impede que se revele. Não entendo porque razão hão-de prescrever estes crimes - nem, aliás, quaisquer outros. A pedofilia é um crime que se exerce sobre crianças, ou seja, seres frágeis e totalmente desprovidos de poder. É um crime de que a vítima muitas vezes acaba por se sentir cúmplice, e que afecta irreversivelmente a sua identidade e a sua vida. A prescrição, em particular neste crime, representa conivência da lei com o criminoso. A mensagem é a de que, passado um tempo, não há sequelas nem razão para se falar de crime. A revolta desta vítima remetida à brutalidade do papel de testemunha é a prova de que assim não é - e o silêncio obrigatório em torno da "figura do Estado" demonstra quem e o quê está a proteger a Lei: o poder e os poderosos. As ameaças da vítima foram relatadas ao procurador pelo próprio psiquiatra, que teve a coragem de enfrentar o paciente e avisá-lo de que o iria fazer (condição necessária para a quebra do sigilo profissional). Se todos os psiquiatras tivessem esta coragem, haveria certamente menos crimes. Mas enquanto se admitir a prescrição deste crime tenebroso, os pedófilos continuarão impunes. E a culpa não é da Igreja - é dos políticos, que fazem leis para proteger, antes de mais, os seus correligionários. Não há pedófilos e pedófilos: todos são criminosos. É mais que tempo de sairmos da Grécia Antiga.

6 comments:

Moi said...

Nunca concordei tanto com um post de alguém como deste teu.
Tens toda a razão, como podem crimes como estes prescrever?!... É inconcebível na mente humana tal atrocidade, bem como as marcas que ficam nas suas vitimas.

um beijito
Angel

D. R. said...
This comment has been removed by the author.
D. R. said...

Eu não entendo como um advogado consegue dormir ao defender estes "seres humanos". Se é que lhes posso chamar "seres humanos"...
É isso que acaba por determinar a minha escolha de não ser advogada. Sei que ninguém é obrigado a defender tudo o que lhe aparece. Mas é uma questão de Justiça. Todos temos direito a ser defendidos.
Mas, para mim, é demais. Dói-me na alma. Nunca poderia aguentar defender quem pratica estes actos. Ver ali, as crianças indefesas, a chorar, a contar o que lhe fizeram... Com a vida desfeita, com a auto-estima no grau mais negativo que eu possa imaginar...

Todas as pessoas erram. Acredito que Deus também lhes pode perdoar. Mesmo aos pedófilos.
Mas isso pressuporia arrependimento verdadeiro. O que não me parece existir, infelizmente. Uma vez que ninguém confessa o que fez, ninguém é verdadeiro. Todos mentem e escondem os podres que os acompanharão toda a vida, mesmo que não sejam condenados.


E a pedofilia, embora me doa o coração ao pensar nisso, também existe de pais para filhos.

Neste mundo acontecem coisas muito cruéis, tenebrosas, horrendas. :'(

Deus ajude todas as vítimas destas atrocidades.

Valéria Gomes said...

Jamais poderei entender o que vai na cabeça de pessoas que praticam tal atrocidade. Dói-me pensar que nada fica intácto. Até a infância é mexida, até a infância.

Que Deus os faça parar!

Beijos!!! :0(

augusto, um entre mil said...

Sim, a igreja não tem que pedir desculpa pelos crimes de alguns dos seus membros. A igreja deveria ter, ao saber que eles o faziam, denunciado e remetê-los para o devido castigo, castigo esse que não seria nunca suficiente. A altas personalidades da igreja que deixaram que eles continuassem a exercer os seus cargos foram cúmplices. Tão simples como isso.

Serão, eventualmente, igreja e governos, todos uma grande cambada?

poetaeusou . . . said...

*
amiga,
,
ao contrário de Dostoiévski
é Crime sem Castigo !
,
Marés de justiça,
Deixo,
*