Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
[Álvaro de Campos-Poema em linha recta]
É fácil chegar à rua para por lá ficar. Costuma dizer-se: cair na rua. Mas quem costuma são os que estão em casa, os que sempre estiveram em casa e por isso não imaginam a facilidade com que as paredes se desfazem. Não são só os drogados, os alcoólicos, enfim, os viciados. Há tantos vícios dentro de portas. Às vezes é isso o que empurra as pessoas para a rua: o álcool excessivo de um pai, de um marido. A necessidade de encontrar um sítio onde a nossa cabeça não vá, noite após noite, bater nas paredes até sangrar. Outras vezes fugimos para a rua para não enlouquecer de desalento, para aprender a não esperar mais nada de ninguém, para nunca mais voltarmos a desesperar por amor de alguém. Estes são os casos ditos mais difíceis, resistentes às assistentes sociais, aos lares, aos 'projectos de vida', à chamada 'reintegração'. Estúpida palavra, absurda, cheia de gelo e fealdade - reintegração. Todos os reintegradores acabarão um dia, um dia não muito longe, reintegrados na terra. Ou no fogo. Isto, os que vivem na rua sabem-no melhor do que todos os outros. Têm a fortuna imensa de já não ter nada a perder - por isso, podem dar-se ao luxo de ficar um dia inteiro a olhar para o rio, de manter esse rito infantil do deslumbramento sem horários nem causas ou consequências. Os que vivem na rua podem cair em buracos, passar fome e frio, estender a mão à má consciência alheia, mas as grilhetas da subserviência e da vaidade não lhes atrapalham os passos. Não dobram a espinha a cargos ou mordomias. Olham as pessoas nos olhos para perceber de que são feitas. Podem pedir, mas não se vendem - quantos dos que vivem dentro de portas conhecem esta dignidade?
Para desgosto dos altos desígnios do turismo nacional, os que vivem na rua gostam de lugares bonitos. Gostam do Terreiro do Paço, por exemplo. Um desassossego. "Tirem-nos daqui! Tirem-nos daqui!", bradava há meses uma figura do efémero poder, agoniada. Enxotam-nos e eles voltam, como gaivotas, para a beira rio. Indiferentes à repulsa dos outros, ao medo, que já não sabem o que é. Querem metê-los em camaratas, fechá-los no recato da caridade com uma sopa e um catre - e eles continuam a fugir para dormir sobre cartões num passeio da cidade. Porquê? Porque têm as estrelas a seu favor, e a solidariedade dos que, como eles, desistiram da vida dos cartões e dos deveres e da concorrência. Na rua ninguém pergunta, ninguém pede contas, não é preciso dar resposta. Na rua pode-se chorar sem ter de dizer porquê, sem termos de recordar porquê.
Há apaixonados que encontram na rua a casa que não podem ter. O caso de uma cigana e um cabo-verdiano, juntos contra o perigoso séquito da família dela, que só na rua encontraram casa para o seu amor. Ou o caso da mulher fugida à violência do seu homem que se apresenta no escritório diariamente e esconde que já não tem casa. A mulher que diz que nos amigos da rua encontrou o carinho que nunca conheceu na família.
Quando a temperatura de Lisboa desceu a zero, a Câmara Municipal, em conjunto com a Santa Casa da Misericórdia, montou uma tenda de apoio aos que vivem na rua, uma tenda aquecida, com sopas quentes, sandes e distribuição de roupas e cobertores. Havia também uma televisão na tenda, e as pessoas ficavam por ali, no calor do convívio, a conversar, a olhar para o ecrã, a ler. A ler livros, sim. A escrever poemas à amada distante. Ou apenas a sentir o consolo da presença dos outros. Quando a notícia da tenda correu pela cidade, apareceram também outros: o velho que vive sozinho com uma reforma baixa, a adolescente que se sente a mais no mundo, gente com tecto mas a desabar por dentro, parede a parede. Vieram as câmaras das televisões e dois homens foram reconhecidos e resgatados, um pela família, outro pelo antigo patrão.
Histórias que sossegam e aquecem, durante um par de dias. A vereadora Ana Sara Brito e as equipas de rua que ela coordena conhecem bem cada uma destas pessoas, percorrem a cidade todas as noites do ano para os ouvir e lhes dar conforto, procurando ajudar, compreender cada história e cada alma, sem sermões nem ordens de "reintegração". É um trabalho lento, doloroso, discreto, contínuo, sem a visibilidade pimpona das obras de cimento, que dão votos. É o trabalho do amor, aquele que nunca está completo e que sempre nos fere. Sem-abrigo somos todos nós, e muito mais os que vivem sob o tecto do êxito obrigatório e agarrados às paredes do poder do que os que vivem na rua, sem nada e sem medo.
Para desgosto dos altos desígnios do turismo nacional, os que vivem na rua gostam de lugares bonitos. Gostam do Terreiro do Paço, por exemplo. Um desassossego. "Tirem-nos daqui! Tirem-nos daqui!", bradava há meses uma figura do efémero poder, agoniada. Enxotam-nos e eles voltam, como gaivotas, para a beira rio. Indiferentes à repulsa dos outros, ao medo, que já não sabem o que é. Querem metê-los em camaratas, fechá-los no recato da caridade com uma sopa e um catre - e eles continuam a fugir para dormir sobre cartões num passeio da cidade. Porquê? Porque têm as estrelas a seu favor, e a solidariedade dos que, como eles, desistiram da vida dos cartões e dos deveres e da concorrência. Na rua ninguém pergunta, ninguém pede contas, não é preciso dar resposta. Na rua pode-se chorar sem ter de dizer porquê, sem termos de recordar porquê.
Há apaixonados que encontram na rua a casa que não podem ter. O caso de uma cigana e um cabo-verdiano, juntos contra o perigoso séquito da família dela, que só na rua encontraram casa para o seu amor. Ou o caso da mulher fugida à violência do seu homem que se apresenta no escritório diariamente e esconde que já não tem casa. A mulher que diz que nos amigos da rua encontrou o carinho que nunca conheceu na família.
Quando a temperatura de Lisboa desceu a zero, a Câmara Municipal, em conjunto com a Santa Casa da Misericórdia, montou uma tenda de apoio aos que vivem na rua, uma tenda aquecida, com sopas quentes, sandes e distribuição de roupas e cobertores. Havia também uma televisão na tenda, e as pessoas ficavam por ali, no calor do convívio, a conversar, a olhar para o ecrã, a ler. A ler livros, sim. A escrever poemas à amada distante. Ou apenas a sentir o consolo da presença dos outros. Quando a notícia da tenda correu pela cidade, apareceram também outros: o velho que vive sozinho com uma reforma baixa, a adolescente que se sente a mais no mundo, gente com tecto mas a desabar por dentro, parede a parede. Vieram as câmaras das televisões e dois homens foram reconhecidos e resgatados, um pela família, outro pelo antigo patrão.
Histórias que sossegam e aquecem, durante um par de dias. A vereadora Ana Sara Brito e as equipas de rua que ela coordena conhecem bem cada uma destas pessoas, percorrem a cidade todas as noites do ano para os ouvir e lhes dar conforto, procurando ajudar, compreender cada história e cada alma, sem sermões nem ordens de "reintegração". É um trabalho lento, doloroso, discreto, contínuo, sem a visibilidade pimpona das obras de cimento, que dão votos. É o trabalho do amor, aquele que nunca está completo e que sempre nos fere. Sem-abrigo somos todos nós, e muito mais os que vivem sob o tecto do êxito obrigatório e agarrados às paredes do poder do que os que vivem na rua, sem nada e sem medo.
25 comments:
Ando a ler O Solista, uma história quase toda passada na rua, no Universo dos Sem Abrigo e também me apeteceu, ontem, escrever sobre o que é viver na rua.
Obrigada :)
Ando a ler O Solista, uma história quase toda passada na rua, no Universo dos Sem Abrigo e também me apeteceu, ontem, escrever sobre o que é viver na rua.
Obrigada :)
Muita gente que vive na rua sofre de pertubações mentais (principalmente os velhotes) onde uma possível integração na sociedade seria de todo impossível
:)
liberdade...
É um sufoco, uma tristeza, ver cada vez mais gente a viver na rua. Os velhinhos, que não têm ninguém ou alguém que se preocupe. E agora, com as falências e desemprego, será que ainda vai ser pior? Ai, ai, ai.
Lê a poesia do Sebastião Alba, sem abrigo por opção, morto numa estrada secundária, como um cão vadio, por um carro em fuga numa noite escura...
Também li essa crónica e achei-a fantástica.
Gosto muito da Inês Pedrosa, tem uma escrita que sendo enxuta, é também muito bonita e incisiva.
Este texto é fantástico e retrata bem uma realidade triste e extraordinariamente preocupante.
Beijinhos
E se é mau cair num caminho desses e viver como tanta gente vive, pior é sentir a exclusão da sociedade quando alguem se tenta integrar... beijinho*
nunca tinha analisado o caso desta forma.
claro que há algum exagero positivo no texto, porque nos faz pensar...
bjs Velas
Um texto bem escrito, incisivo e comovente. Para reflectir. **
Querida Velas, nas minhas visitas habituais a ti não te costumo cumprimentar. Que mal educada sou. Mas sabes, ultimamente tenho-me sentido um pouco "sem-abrigo". Tal como eles, eu também prefiro ficar no meu canto, não interagir com ninguém, esconder a cara nas mãos e fingir que estou noutro lado, que sou outra pessoa, ou que as vivências dos que me são próximos não passaram de um pesadelo.
gostei de ler
lúcido
dorido
real
jocas maradas de medos..tantos
saio sem palavras.
a abraçar-te.
Corajosos são os que trocam o conforto, para entrar numa realidade dura e cruel com a intenção de dar algum conforto a um estranho que precisa de tudo, mas a quem pouco faz toda a diferença.
Se não fossem apenas "meia duzia" em 10 milhoes de habitantes a fazer esse trabalho que dizes lento, doloroso, discreto, este deixaria do o ser! seria a maior obra publica, e mais bem sucedida de sempre. A mim me incluo na culpa de ainda ser notícia quando a caridade é feita.
Gosto de te ler :)
Beijinhos
Dá que pensar, tudo o que escreveste. Sobretudo a última frase...
Beijinhos
Olhei-me no passado.
E... é verdade!
Quantas vezes... sem-abrigo... sob telhas e com ar condicionado.
Bjs
Este texto está extraordinário. Perfeito. Gostava de o ter escrito, digo assim neste elogio tão usado e que qualquer dia não quer dizer nada. Mas acredita. É mesmo isso: está extraordinário e gostava de o ter escrito. Não sei dizer melhor...
Li-o assim, no deslumbramento da sua lucidez e beleza. E pensei: "Estou a lê-lo como quem tem casa.... E como seria lê-lo se vivesse na rua?"
Fica-me a inquietação de muitas vezes a nossa casa ou a nossa rua ser a nossa escrita.
Beijo grande.
Fantástico Vela. Até vi o filme... as tuas palavras são tão reais que foi um alerta. São duras mas verdadeiras.
Quem vive na rua já nada tem perder, nem o medo...
Trabalhos arduo de quem se prontifica de coração...
embora muitas das vezes o telhado de uma casa seja muito barato para encobrir outro tipo de dores...
Todos nós somos sem abrigo de quando em vez...
beijo vela
... muito interessante. No ponto.
um dia quem sabe, né?
bj*
Se pensarmos
lá no fundo do mar
todos nós
sem abrigo
enquanto não vimos à tona
Textos destes, é que deviam abrir os noticiarios e ser primeiras paginas de jornais e revistas. Textos que nos mostram caminhos e nos fazem pensar. Limitamo-nos a seguir o rebanho e deixar que outros nos facilitem o trabalho de pensar. é um texto genial, inteligente e bonito.
Eu nao sou sem-abrigo mas nunca tive tao pouco e nunca fui tao feliz.
O que me ensinaram desde sempre já mandei tudo para o lixo. Sou pela liberdade individual, e tb pelo amor que pratico todos os dias com pessoas que vivem em casas pobres e frias e que, mais importante que o resto, têm o coraçao desabrigado e/ou abandonado...
Muito obrigada a ti, pelo excelente post!
"Tirem-nos daqui! Tirem-nos daqui!"
Vi miudos mais novos que eu, preocupados com velhos muito mais velhos que eu. Perguntei-lhes se queriam boleia até "à Sopa" que tinha dado nas noticias? disseram que não, preferiam cigarros...
De Alcantara para Cascais, quem vive na rua é de Leste e tem MUITA vergonha por o que trabalham não lhes permitir ter um tecto.
Seria facil, claro... ainda ontem à noite revi (538x) o Robin dos Bosques (versão Raposa)...
Beijo deste seu leitor a quem o futuro pode muito bem passar por este post, mais uns anitos como os ultimos meses e tufas!
Fantástico. Sem rodeios ...
Gostei imenso de (te) ler. Mesmo muito
:))
um sorriso
iv*
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