Sunday, February 07, 2010

Conhecer_Miguel Esteves Cardoso


Nunca vou ao fim das coisas. Tudo começa. Nada acaba. Eu não deixo. No meu sonho, tudo continua, tudo se repete, mesmo que seja preciso interrompê-las de vez em quando. Tenho medo que acabem. Porque é que se hão-de levar as coisas ao fim?

Amo o incompleto, o suspenso, o atravessado, o interrompido. Os fins entristecem-me. Viver as coisas até ao fim é matá-las.

E trocá-las por outras novas é traí-las. Melhor trazê-las sempre, duvidosas e imprevisíveis mas ainda gostadas e presentes.

Se acabo um livro, sinto-me derrotado, fico deprimido, queria que continuasse, e não continua. Reler não é a mesma coisa. Lembrar não é tão bom como viver. Mas é melhor do que matar. Repugna-me a ideia das relações humanas que se «esgotam». Faz lembrar esgotos. Como se um sentimento se pudesse despachar. É preferível abandonar a pessoa que se ama e guardar o amor que se tem por ela a segui-la até à saciedade.

As pessoas namoram e ficam casadas até se odiarem. Os amigos convivem de mais e começam a chatear-se. As famílias passam tempo de mais juntas, até descobrirem todos os defeitos de cada uma. Dir-se-ia que as pessoas não suportam ter o coração dependente e então cansam- -no propositadamente, para se verem livres do sentimento verdadeiro e bom que sentiam.

Porque é que as pessoas que querem ser livres, independentes e tudo o mais, são aquelas que mais mal aguentam a solidão? Porque, para o mal e para o bem, habituaram-se a uma companhia constante. Não percebem que as saudades, os desejos nunca realizados, os sonhos que ficaram suspensos, são a melhor companhia (embora também a mais triste) que se pode ter?

Nunca se deve conhecer nada a fundo. Não falando na pretensão de pensar que se pode conhecer. Quando se diz «Conheço-o como as palmas das minhas mãos», há sempre uma insinuação feia e negativa. As pessoas, quando estão tristes ou mal-dispostas, não deveriam expor- -se. É uma falta de respeito pelos outros.

Deve-se ser turista nas coisas do amor. Conservar o deslumbramento. Fechar os olhos quando desmorona a fachada. A intimidade verdadeira é partilhar a descrença na ilusão. Um navio visto ao longe. A lua. Os microscópios são detestáveis. Quem quer conhecer os segredos da casa das máquinas ou a superfície das estrelas? Não é por se estar mais próximo que se está mais próximo da verdade. A verdade é aquilo em que acreditamos.

Quem acredita ainda na distinção entre conhecimento e fé? Porquê provocar, remexer no passado, fazer perguntas? É como se as pessoas quisessem destruir o que as comove. É esse o sentido da frase de Wilde, que cada pessoa mata aquilo que ama. E tudo o que ele diz sobre a superfície é profundo. Não é só horrendo saber a «verdade» sobre James Dean ou Marilyn Monroe " é um engano arrogante. As coisas também se percebem, também se amam, à distância.

Para mim, as fotografias de Inês Gonçalves é que são Portugal. Não são as reportagens e as notícias. E não admito que me chamem romântico. Eu sei que por trás daquele miúdo ou daquela árvore há não sei quê e não sei que mais. A Inês também sabe. Por isso é que fotografa como fotografa. Entre o que vê e o que fotografa vai a distância que eu admiro e, não só isso, sei que vai ficar. Entre ser esclarecido e ser iluminado, não há diferença. Mas, se houvesse, eu prefiro ser iluminado. Prefiro a revelação ao registo. Não me custa nada dizer que as fotografias da Inês são o «por trás» do «por trás», já que mostram a alma portuguesa fora do tempo e das circunstâncias, mas, ao mesmo tempo, sem mentir, dentro delas.

Gosto de tudo a que chamam «cerimónia» e «boa educação». Odeio-me quando cedo a ler biografias de escritores que admiro. Tenho a certeza que a chamada «face» pública, que é a obra, que é o rosto que mostram, é não só mais bonita como mais verdadeira que as pesquisas arqueológicas que tencionam revelar o lado particular com a ideia de que esta está escondida, é clandestina, e deita luz sobre o que já se sabe. Com o tempo, o que é que fica da vida de Platão ou de Camões? O que é que interessa?

Mas as pessoas não devem aguentar o amor, porque, mal amam, logo procuram destruí-lo com a falsa noção do conhecimento. É a mania dos «bastidores». Que interesse podem ter os bastidores duma pessoa ou de uma peça de teatro? O que é que tem a tecnologia do cd a ver com a música? O sistema de canalização de uma casa? Uma ecografia? Não completam nada. São outras coisas separadas.

Em boa verdade, eu não sei por que é que um pássaro voa, nem quero saber. Voar já é tanto. Explicar o voo morfologicamente é reduzi--lo, é fazê-lo aterrar. O que é banal para o pássaro tem de continuar a ser maravilhoso para nós. Walt Disney é uma coisa. A biologia e as técnicas de animação são outras.

Gosto das primeiras impressões, sobretudo quando se vão repetindo ao longo dos tempos. Odeio e evito as descobertas, género «Descobri que Fulano era afinal um malandro». Este afinal, com o seu tom peremptório e arrogante, como se fosse possível definir definitivamente um ser humano, irrita-me. É um acto de amizade não estar sempre a vasculhar e a reinterpretar os amigos. Toda a gente sabe que as pessoas são polifacetadas " mas porque não restringirmo-nos à faceta que conhecemos de que mais gostamos?

A vida é muito complicada e o nosso coração precisa de simplificá--la, sem ter medo de se «enganar». É preciso resistir à curiosidade e à arrogância.

Conhecer deveria ser só o primeiro passo.

5 comments:

via said...

fabuloso!

Teresa Durães said...

mas eu gosto da curiosidade...

As Chamas do Fénix said...

Muito bom mesmo... obrigado pela dica no Face sobre este teu cantinho.

Uma Grande Chama para ti... beijos

joão said...

"As pessoas, quando estão tristes ou mal-dispostas, não deveriam expor- -se. É uma falta de respeito pelos outros."

just me, an ordinary girl said...

Bem, adorei estes pensamentos de Miguel estves Cardoso, e fez-me pensar!!
eu sou daquelas que está sempre a tentar conhecer, perceber, dissecar....
Se calhar estou errada, vou reconsiderar...

Um beijo grande e obrigada pela partilha!!!!