"A dor é bactéria, cuspo viral, réptil viscoso que faz ninho.Assim que nos entra, nunca mais nos deixará. Mastiguemos ambas as palavras:nunca mais.Invade nos silênciosa.Mistura se com todo o sangue e tripas que há em nós, comanda nos sem se deixar ver.
...Julgamos, muitas vezes, que a dor já lá não ha de estar, confiantes no grande remédio que nos ensinam cura tudo.
O tempo.
E contudo há sempre um dia, um acontecimento, uma conversa, uma situação que observamos, ou esse tal objecto insignificante que reencontramos.
E a serpente morde nos outra vez os tendões."
[Canário_Rodrigo Guedes Carvalho]
Acabei de ler Canário do Rodrigo Guedes Carvalho e não gostei, simplesmente adorei. É um livro de afectos, desejos, ambições e medos, uns exteriorizados, outros escondidos, porque socialmente é melhor parecer do que ser.Várias histórias paralelas e que descobrimos unirem se num só ponto.Histórias que a determinada altura se unem por uma coincidência que se vem a verificar não ser feliz.
Geraldo, um jovem preso que viu a sua vida desmoronar se no dia em que mata o amante da mãe depois de este a ter agredido mais uma vez.Maria Antónia,mulher de um escritor famoso, que se anulou voluntariamente por de um amor desgastado e vazio de afectos, uma familia que considerava imaculada.Camila, filha do escritor, mulher fragil, com um pai ausente e uma mãe mal amada. Impotente perante um filho autista e a dor de um casamento que acabou por ter um marido fraco incapaz de lidar com o desequilíbrio que a doença de Pedro provocou na conjugalidade.Alexandre, escritor famoso e consagrado, como tal egocêntrico e obcecado por ser criativo em cada livro que cria. Toda a sua vida feriu emocionalmente os que o rodeiam anulando as suas identidades e revelando o seu profundo narcisismo. É ele o ponto comum de todo o livro.
Ao longo do livro, vivemos imposições sociais e conflitos emocionais a que não escapamos incólumes, ou por vivermos entre grades de uma cela, ou porque algemas invisiveis nos prendem as mãos.Algemas que herdamos, da familia e da sociedade, e que no fundo, bem lá no fundo até alimentamos com mais ou menos luta numa sociedade, que nos rouba os afectos. Paradoxalmente, os mesmos afectos que todos precisamos, procuramos e resgatamos de quando em vez. Afinal, todos somos também canários…