Wednesday, June 10, 2009

Lagos III_Sophia de Mello Breyner Andresen

Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas. Passa debaixo da porta e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco de cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar. Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio ar salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma mesa de pedra. À tua direita então verás uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de meia idade com rugas finas e leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de orégãos, um ramo de salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos: mas os figos não são pretos mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles corre uma lágrima de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois desce a escada, sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora aí verás que ao longo das paredes nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra, no outro a mão do Sol. Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada.Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível.[texto escrito por Sophia que retrata a forma como ensinou a sua empregada como ir a pé da casa de férias em Lagos até ao mercado na mesma cidade. enunciou-lhe o caminho, mostrando lhe o que veria a cada passo.belissimo este texto...digo eu!]

12 comments:

inBluesY said...

belissimo sim.

recolhi esta parte:

"E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros."

e esta:

"suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar."

Porcelain said...

Tenho com Sophia de Mello Breyner uma relação de amor/ódio; escreve magnificamente, capaz de transformar coisas que poderiam ser olhadas com banalidade, num mar de sentidos, como fez aqui; transforma o banal em excepcional e isso é capaz de ser das coisas que mais aprecio num escritor. Por outro lado, sei que, ocasionalmente, quando menos esperamos, inebriados pela festa da sua escrita, ela trai-nos e deixa ver o vazio que possuía na sua alma, uma certa superficialidade surge e dá-me vontade de atirar com os livros dela à parede, ou simplesmente pela janela fora. Muito dinheiro, muita aristocracia, normalmente é no que dá. Pobre em introspecção... é uma pena. Frustra-me, por vezes.

Mas este texto está simplesmente delicioso. É daqueles que não me deixam mandá-la passear. :D

Beijinhos!

PS: gosto muito de Coldplay!

Noiva Judia said...

É a minha poetisa preferida. Adoro a maneira como constrói frases tão belas com palavras tão banais.

Su said...

tens razão, li , reli, gostei,.....

belissimo, sem duvida

jocas maradas de sol

continuando assim... said...

tão bem que conheço a ... luz liquida de Lagos... :)

IandU said...

Fantástico mesmo, até dá vontade de dar descrições destas quando nos pedirem direcções :P

Lu.a said...

Belíssimo sim dizes tu, e muito bem! :)
Bom fim de semana*

_E se eu fosse puta...Tu lias?_ said...

Sarava!

Como diria a Shopia

"em tudo de belo há um monstro suspenso"

beijinhos

Anonymous said...

Esta senhora muito dela deixou e muito bom de se ler.. vale a pena sem duvida. beijinho

Pearl said...

Amo LAGOS!!


beijos

Canto da Carlota said...

O que tenho perdido....

By Me said...

FOI MUITO AGRADÁVEL RELÊ-LO... A ESCRITA DESSA SENHORA PROVOCA UM PRAZER INFINDÁVEL . FOI A MINHA ESCRITORA DESDE PEQUENINA,CRESCI COM ELA E CONTINUO "APAIXONADA" POR ELA.

OBRIGADA POR ISSO

GOSTEI MUITO

RECORDEI OUTROS TEMPOS