Sunday, January 06, 2008

dizer adeus a Luiz Pacheco


Lembras-te Fátima? era o que eu sempre te dizia, não somos nada nas mãos do acaso, e não há mais filosofia do que esta: deixar andar, tanto faz, hoje ou amanhã morremos todos, daqui a cem anos que importância tem isto, quem se lembrará de nós? quem se lembrará de mim? se nem tu já te lembras de mim agora, tu, a quem tanto amei, não te lembras, e foi há tão pouco, foi ontem, parece, que te levantaste e disseste: «Ficamos amigos como dantes»... E dizias: como dantes e era já noutro que pensavas, olhavas-me e nos teus olhos ria-se a traição, o prazer da liberdade, um desafio alegre, uma alegria provocante e desapiedada, ias a meu lado pela última vez e eu era já um estranho para ti, um fantasma a quem se concede, por caridade, uns momentos mais de companhia, algumas palavras vagas distraídas, um pouco de estima, talvez. Reparei: o teu corpo, oh corpo do meu prazer! oh carne virgem sangrando debaixo de mim! oh meu repouso e minha febre! o teu corpo outrora tão cativo e tão submisso, ficara de repente cerimonioso e esquivo, cauteloso, afastado, com um pudor forçado no puxares a saia sobre os joelhos, como se tivesse uma grande vergonha do despudor com que se dera antes...Dizias: como dantes e não era já nisso que pensavas, e não era já para mim que falavas, eu era uma coisa para esquecer, para deitar fora, uma coisa que se abandona caída no chão e se perde sem pena. Dizias: «adeus» e saías da minha vida com um aperto de mão desembaraçado, quase cordial um gesto de boa camarada, como se nada tivesse havido antes, como se não tivéssemos sido tantas vezes na cama, um dentro do outro, um no outro, um-outro diferente, uma coisa sublime: Deus Criador, como os míseros humanos só ali o podem sentir e saber; um Outro que éramos nós ainda, mas tão transtornados, tão virados para fora de nós, tão esquecidos do mundo e de nós, tão eficazes, tão leais, nós boca com boca, corpo a corpo, um sexo torturando um sexo, mordendo-se devorando-se, numa febre de chegar ao fim depressa, ao esquecimento, ao repouso. Disseste: adeus e eu odiei-te logo nesse minuto, como te odeio agora, não por ti ou pelo teu corpo que já me esqueceu noutros que vieram depois, mas porque morri ali naquela palavra, -morri entendes? -, perdi-me numa grande confusão, esqueci-me de ser eu, fiquei roubado do meu passado.Hoje, encontrarias um outro homem; havia de rir-me do teu corpo, da sua entrega ou das suas traições, de tu me dizeres: «Vem» ou «Adeus...», ou «Não quero...». Hoje, saberias quem fizeste com uma só palavra, conhecerias um outro homem, que é obra tua, minha segunda mãe! Hoje, havia de rir ou chorar, era a máscara do momento; mas diria: tanto faz..., tanto me faz... Sabia-o!
Luiz Pacheco-Carta a Fátima

18 comments:

Maria said...

Excelente adeus ao "escritor maldito"....

nat. said...

Adeus...
Com o texto muito poderoso...

Beijinho e bom ano!

Jo said...

ainda há pouco li uma entrevista dele à "K"... triste, tão triste... e ao mesmo tempo aquele humor corrosivo e desconcertante!

Os seres humanos perduram nas memórias que deixam.

Beijo*

Margaret said...

fantástico :) adorei. aí está o que uma pessoa pode sentir com o rompimento de uma relação... puro ódio.

Unknown said...

lamente-se a sua morte.. :(
felizmente ficou a obra..

Luis Pacheco escreveu palavras que muito bom poeta desejaria ter escrito e outros tantos homens desejariam ter vivido

ler este texto e ouvir simultaneamente o one dos u2 é algo de transcendente, quase meteórico que nos projeta em várias direcções

espectacular miúda, obrigado pela sensação..

:)

Aestranha said...

Um poderoso adeus para quem tanto usou o pder da palavra... E há sempre um último adeus, o real...

Beijos

tufa tau said...

muito bonito...

uma carta de desamor... ou, no fundo, seria de amor?

beijo

Carracinha Linda! said...

Venho desejar uma boa semana!

Beijinhos

maria josé quintela said...

nu e cru.
.
.
.
como a realidade.

isabel mendes ferreira said...

eu...
eu....

que digo...???!!!!


nada.

beijo. e curvo-me.

Jaime said...

Obrigado em vez de adeus é o que me permito dizer... não conhecia este texto e há muito tempo que nada me doia assim...

Mais uma vez obrigado...

João Lambelho said...

Muito boas de ler, todas estas palavras que escreves. Vou ficar atento.

poetaeusou . . . said...

*
Sabia daquele mistério
Que puxa muito do peito
Foi a hora de me eu rir
Que a vingança tem seus quês
O mais certo é para aqui vir
Ainda antes que passe um mês
Arranjei um bom lugar
Na pensão de Mestre Pedro
Onde todos vão parar
Embora com muito medo
Não passava de uma semana
O meu dito estava escrito
Vítima daquela magana
Pobre tísico,tadito
,
in - luiz pacheco
,
conchinhas
*

borrowingme said...

bom ano!!!

gôs said...

Se ser "maldito", é escrever assim, pena não haver mais "malditos", talvez o mundo fosse melhor, porque os homens seriam mais corajosos, e olhar-se-ia para a verdade de frente. porque ser verdadadeiro é respeitar o outro.

João Silva said...

confesso que não conheço a obra de Luis pacheco embora soubesse que ele é. O seu desaparecimento teve o condão de me colocar à frente dos olhos alguma da sua escrita e a sedo por mais está aguçada. Obrigado por mais esta leitura que proporcionaste

um beijo

Anonymous said...

caramba!

*bjinho*

Joana said...

forte...
intenso...
desconcertante...